quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O 'Curriculum Mortis', de Leandro Konder

É relativamente fácil o sujeito ficar apontando as deficiências e falhas dos outros, atribuindo aos seus interlocutores a responsabilidade exclusiva por tudo que não deu os resultados previstos e esperados.

O difícil é reconhecermos nossa própria relatividade e admitirmos que aquele que diverge de nós - por mais equivocado que nos pareça ser - em algum ponto pode ter razão.

Quando se recusa a reconhecer a possibilidade de estar errado, o sujeito cancela as lembranças desagradáveis das besteiras que fez (que todo mundo faz) e ficam na sua alegre recordação somente os títulos de glória, o registro dos acertos, o elenco das vitórias.

Isso é claramente visível numa peça que todos conhecemos, que somos obrigados a apresentar quando nos candidatamos a um emprego ou a uma promoção, a um curso ou a uma bolsa: o chamado curriculum vitae.

O curriculum vitae é, atualmente, um sucessor remoto da antiga epopéia. Os obstáculos encontrados ao longo do caminho só são lembrados para realçar a história de um herói, que supera todos os obstáculos, vence todas as batalhas.

Evidentemente, como ninguém é assim, o relato não é convincente, a pretensa epopéia é fajuta. Pelo que diz e sobretudo pelo que não diz, o curriculum vitae é uma mentira.

Numa época de campanha eleitoral, o fenômeno ganha proporções espantosas. Os candidatos a cargos eletivos falam de seus méritos como se estivessem próximos da perfeição. Se o leitor tiver a paciência de ouvi-los, poderá pensar que são santos, aguardando a canonização. Ou que são heróis mitológicos descansando após a última batalha (vitoriosa, é claro!) contra o dragão.

A verdade está longe dessa imagem demagógica. Uma certa modéstia metodológica nos ensina: somos todos aquilo que somos não só pelos sucessos, mas também pelos fracassos. Cada um tem seu lado luminoso e seu avesso sombrio. E aprendeu alguma coisa com ambos.

Ai de nós, se cedermos à tentação de só conservar conosco as lembranças que nos afagam! Ao rememorarmos nossas trajetórias, somos desafiados a superar o conforto das amnésias convenientes e precisamos digerir tudo aquilo de que participamos e que não tem dado certo.

Essa atitude, porém, ainda é rara. Os indivíduos, em geral, preferem a feira das vaidades. O que levou o poeta Fernando Pessoa a escrever no Poema em linha reta o verso famoso: ''Nunca conheci quem tivesse levado porrada''. Todos os seus amigos - queixava-se - eram príncipes, semideuses, campeões em tudo.

Muitas pessoas desenvolvem uma habilidade especial para transformar a autocrítica num auto-elogio. Muitos anos atrás, uma jornalista perguntou a um político - Carlos Lacerda - qual era o maior erro político que ele admitia ter cometido. O entrevistado respondeu que seu maior erro político era o que o deixava isolado quando dizia as coisas mais importantes e verdadeiras antes que as pessoas tivessem tido tempo suficiente para compreendê-las. Ele se declarava, então, vítima da rapidez da sua inteligência.

Habilidade e esperteza, contudo, não têm o poder de destruir a dura verdade que nos ensina: mesmo numa vida humana bem-sucedida, cheia de êxitos - mesmo na vida de um campeão mundial - existe sempre um alto coeficiente de fracassos e derrotas.

Se reconhecermos isso, passaremos a dispor de um interessante instrumento para a avaliação da sinceridade dos que procuram nos impressionar com a frenética exibição de seus triunfos. Podemos pedir a cada um deles que, paralelamente à apresentação do curriculum vitae, nos mostre, também, o que seria o seu curriculum mortis.

Teríamos, lado a lado, informações do tipo: ''fui o primeiro da classe no colégio'' e ''meus colegas me elegeram o mais chato da turma''; ''ganhei um prêmio literário aos 20 anos'' e ''meu pai era o patrocinador do concurso''; ''sempre permaneci fiel ao mesmo partido'' e ''careço completamente de independência''.

Desafiados a apresentar os dois currículos, como se sairiam os atuais candidatos a cargos eletivos? Que impressão produziriam nos eleitores? Conseguiriam nos trazer uma imagem de sinceridade? Assumiriam francamente seus erros? Ou procurariam fazer como Carlos Lacerda: tentariam fazer dos defeitos qualidades?
cadernob@jb.com.br
[13/JUL/2002] - Jornal do Brasil

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